27.4.15

Cíclico


Nas segundas o supermercado não abre
alguns funcionários lavam a rua e a calçada com bastante sabão em pó
debaixo de uma marquise ali perto o andarilho toma o café que conseguiu com o pessoal da obra
serão 11 andares, o suficiente para bloquear todo o sol da casa ao lado

a senhora dentro da casa ouve a discografia do Roberto Carlos
preocupada com sua neta grávida e seu neto que tem ido mal na escola
ouvi dizer que o andarilho fala 3 idiomas e sabe a capital de todos os países
aos poucos os carros começam a passar com mais frequência

um casal discute no ponto de ônibus, eles se abraçam depois que a tensão passa
as mães acompanham suas filhas, que carregam mochilas desproporcionalmente pesadas
mas elas só reclamam do cardápio da cantina e de suas mesadas

nessas mesmas segundas, eu tenho o hábito de me dar novas chances
e enquanto sinto o cheiro do sabão em pó, ouvindo Roberto Carlos
vendo mais um andar se erguer naquele velho terreno baldio
sinto que não é só eu que faço isso












22.4.15

Apnéia


Ás vezes sonho com fantasmas ranzinzas
reclamando de suas vidas desperdiçadas
das apostas no vazio, do desconforto no limbo
do destino de suas ossadas

quando sobra espaço eu também me queixo
eles ouvem atentos e dizem que não é nada
que eu não deveria me preocupar tanto
que eu poderia voar como eles
se não tivesse a consciência pesada

me convidam para os bailes da insônia
somos livres para além do hipocampo
reconhecemos a beleza e falta de sentido
no final de um filme de sessão da tarde, numa folha em branco
num coração partido











18.4.15

dia sim, dia não



Sentado na beira de um rio, folheando dicionários
covarde e calado, ouvindo seus amigos imaginários
discutirem sobre qualquer preocupação futurista
preso em determinadas repetições enfadonhas
buscando energia e motivação
encontra decepção
riscando itens desnecessários de sua longa lista

Por hora, anestesiado pelo sono que o persegue
boceja e perde o ar, visitado por devaneios
existe sempre um plano para continuar
acreditando que o copo está meio cheio
mas não está
e nem é mais a questão
é que a solidão impede
e a gente se perde
deixa pra lá





5.4.15

a deixa


O teto caía na sala ao lado
ouvia-se um hino do lado de fora
a água das tubulações jorrava e a rede elétrica entrou em curto
arrombaram a porta para que pudesse se salvar
você, apegado ao seu canto favorito, dizia:
eu escolhi esperar

os tigres invadiram o acampamento
derrubaram as tochas, tudo pegou fogo
as armas estavam enferrujadas
encurralados, subiram o penhasco e jogaram uma corda
você, insensato e aos solavancos, dizia:
eu escolhi esperar

na saída do templo as paredes se fechavam
as palavras machucavam os ouvidos
os fantasmas rodopiavam carregando escuridão
você, desprovido de si mesmo, dizia:
eu escolhi esperar

na manhã tranquila todos respiravam aliviados
comendo pão, amarrando cadarços
ouvindo as notícias médias dos noticiários
perguntavam de que ano era o seu carro
resmungando que os tempos haviam mudado
você, inclinado ao espanto
inquieto e arrependido
deixou enfim escapar:


não dá mais para esperar